sábado, 27 de dezembro de 2008

Qual o nome do problema?

“A imagem mais marcante da semana foi, para mim, a de uma pequena mão de criança, enegrecida e queimada, com seus minúsculos dedinhos apertados formando um punho e esticando-se para fora do que restou de uma fogueira humana em Ahmedabad, Gujarat, na Índia. O assassinato de crianças é uma especialidade indiana, por assim dizer. Os assassinatos cotidianos de bebês indesejados do sexo feminino, o massacre dos inocentes em Nellie, Assam, na década de 80, quando povoados se voltaram contra povoados vizinhos, o massacre de crianças sikhs em Nova Déli, durante as pavorosas chacinas de represália que se seguiram ao assassinato de Indira Ghandi: todos esses casos são testemunhos de nosso dom especial, que sempre se evidencia com mais brilho em épocas de agitação religiosa, para encharcar nossas crianças de querosene e lhes atear fogo, ou para cortar seus pescoços, sufocá-las ou simplesmente matá-las a golpes de um bom pedaço de pau. (...) "

“O discurso político importa e explica muita coisa. Mas existe algo por baixo dele, alguma coisa que não queremos olhar diretamente na cara: o fato de que, na Índia, assim como em outras partes de nosso mundo cada vez mais sombrio, a religião é um veneno que está intoxicando nosso sangue. Onde a religião intervém, nem os inocentes se salvam.
Entretanto, continuamos a evitar a discussão do assunto, falando da religião nessa linguagem moderna que é a linguagem do respeito. O que há para se respeitar nesses ou em quaisquer outros crimes que quase diariamente são cometidos pelo mundo afora em nome dessa força temida que é a religião? A religião erige totens com resultados fatais, pois é com facilidade que nos dispomos a matar por eles! E depois que o tivermos feito suficientes vezes, o entorpecimento resultante tornará mais fácil fazê-lo ainda outras.
Assim, o problema da Índia acaba revelando ser o problema do mundo. O que acontece na Índia acontece em nome de Deus. O nome do problema é Deus”.


Este é um artigo de Salman Rushdie publicado “Folha de São Paulo” de 17 de março de 2002.

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